Mauricio Tagliari
De São Paulo
Para os internautas ligados em mídias sociais, DM lembra “direct message”. Para os aficionados por futebol, a sigla é uma triste lembrança de que o craque está no “departamento médico”. Mas para nós, apreciadores de boa bebida, DM é o rei dos coquetéis: o Dry Martini. Alguém pode contestar esta realeza, mas o Instituto DataEuMesmo de Pesquisas confirma. Pode haver preferências regionais, um mojito em Cuba, um bellini em Veneza, uma caipirinha no Brasil e assim por diante, mas quem conhece um pouco de drinks já ouviu falar no nosso querido DM. Pode até não ter provado e, se provou, pode não ter gostado. Mas já ouviu falar.
Seja no cinema popular de um 007, no mais sofisticado de um Buñuel ou mesmo num seriado vespertino da Feiticeira, o DM rola solto. O interessante é justamente o fato de ser popular e ao mesmo tempo um pouco temido e controverso. Temido por ser uma bebida forte, que exige autocontrole. E controverso pela história de suas origens e modo de preparo.
Se foi criado, pela versão mais aceita, numa cidade próxima a São Francisco chamada Martinez; no Occidental Hotel, em 1862, por Jerry Thomas; ou antes, na Europa, por um músico alemão chamado Johann Paul Aegius Schwartzendorf (1741-1816), que emigou para a França mudando seu nome para Jean Paul Aegide Martini, na cola do sucesso musical dos mestres italianos; ou ainda, em 1910, por outro barman chamado Martini di Arma di Taggia do Knickerbocker Hotel, em New York, tudo isso parece difícil de averiguar. O mais provável é que este último, o barman, tenha ao menos definido o padrão do uso de vermute branco seco.
O que importa, mais do que a história, é o símbolo e o mito em torno do coquetel. Considerado o drink dos escritores, é sem dúvida uma bebida de concentração e reflexão. Não se adequa ao oba-oba de uma balada com a galera. Não combina com assistir a um futebol no bar… H.L. Mencken disse que o DM seria “a única invenção americana tão perfeita quanto um soneto”. Tendo a discordar. O blues cumpre bem este papel. Mas sem dúvida a concepção do Martini criou uma espécie de moldura, de fórmula, similar ao soneto. Ao invés do número de versos e ordem das rimas, as constantes são a bebida destilada branca, o elemento aromático e o “tempero”.
Desde os anos 90, época de um verdadeiro revival do coquetel, as experiências têm evoluído muito e hoje se pode dizer que Martini é quase um gênero de coquetel. Uma espécie de família. Para alguns jovens, nem é feito com gin, e sim com vodka. A criatividade não tem limites. O que não agrada nada aos mais puristas. Concordo com eles em parte, pois para apreciar os novos martinis é essencial conhecer bem a sua origem. O também chamado American Dry Martini.
Aliás, os norte-americanos são ciosos desta denominação. O que não deixa de ser curioso. O American Dry Martini leva London Dry Gin, vermute preferencialmente francês, e tem um nome italiano. Sua preparação é assunto para mais de um livro. É famosa a afirmação de Ernerst Hemingway aqui citada de memória segundo a qual “se você se perder numa selva, não se preocupe. Basta começar a preparar um Dry Martini que alguém logo aparecerá para dizer que a maneira correta de fazê-lo é outra”.
Citei Ernest Hemingway ironizando as infinitas formas de preparo de acordo com as preferências pessoais. Talvez daí venha parte do mistério desta bebida. O Dry Martini é um espelho da cultura e do gosto de quem bebe. Sempre que vou pela primeira vez a um bar que se pretende sério, peço um DM, indicando o gin de minha preferência. É um teste pelo qual o bar tem de passar. Se reprovado aí, nem sigo para outros drinks.
Por mais enigmático que seja seu preparo, alguns requisitos parecem imprescindíveis para manter a nossa “forma soneto”. A bebida de base tem de ser muito boa. Gin ou vodka, que seja da melhor qualidade. Um gin de segunda num Gin Tônica, por exemplo, não faz feio. Seu sabor se dilui, também seus defeitos. Uma vodka mais vulgar num Bloody Mary não é um problema. Num martini, a coisa muda. As qualidades e defeitos do destilado se evidenciam pela alta concentração.
Também não importa qual a receita do martini, mas sim que ele seja muito gelado. Há até uma corrente, incluído aí o gênio cineasta Luis Buñuel, que recomenda guardar todos os ingredientes e utensílios de preparo no freezer. Pessoalmente, eu apoio. Com exceção do vermute e das azeitonas, que devem ficar no refrigerador.
O gelo, no caso, é o ponto mais crítico. Deve ser de água pura e mantido em local distante de alimentos condutores de aromas não desejáveis, como carnes e peixes. Durante o preparo, mesmo descartada ao final, parte do gelo vai derreter e se mesclar ao coquetel.
Qualquer aroma estranho pode arruinar nosso DM. O equilíbrio exato da diluição, porém, vai depender do tempo de preparo.
Recomenda-se mexer com uma colher de barman por 15 segundos, não mais. Desta forma, a mistura atingirá a temperatura ideal sem excesso de água. Mais tempo, não deixará sua bebida mais gelada, apenas mais aguada. Falaremos do dilema “shaken or stirred” mais adiante.
Mas estamos colocando a carroça na frente dos bois. Antes de pensarmos no gelo, que tal discutir o vermute? O vermute é um vinho aromatizado, geralmente com artemísia, entre outros ingredientes. Bem, deve, como citado acima, ser branco e seco.
O mais tradicionalmente usado é o francês Noilly Prat, original de Marselha. O adepto do martini mais tradicional costuma preferir uma proporção bem reduzida de vermute na mistura. O fato é que quanto menor for sua quantidade, mais picante e refrescante será o coquetel. De forma oposta, seu excesso torna o drink meio xoxo…
Muito importante, a esta altura, falarmos do copo. O copo de martini é um ícone. De pedestal estreito e corpo cônico, um triângulo quando visto de perfil, ele simboliza o coquetel. Brilha nos luminosos de Las Vegas até Palma, em Tocantins. Seu formato é inconfundível. Não se engane, porém, com os copos muito grandes. O ideal é conter apenas a quantidade para beber gelado.
Entre os defensores do “stirred, not shaken” está o escritor Somerset Maugham e grandes bartenders pelo mundo afora. Na outra ala, mais pop, do “shaken, not stirred”, estão James Bond e seus milhões de fãs. Ambas as partes têm seus prós e contras. Definamos “shaken” como o drink feito na coqueteleira e “chacoalhado”. “Stirred” é aquele preparado num copo de bar e mexido com uma colher longa de bartender. O chacoalhado, apesar de gelar mais rapidamente a mistura, torna-a mais aguada, com as inevitáveis microlascas de gelo. Por outro lado, seu sabor fica mais agudo por conta da reação de oxigenação dos aldeídos. Em alguns raros casos, pode surgir uma certa “névoa”, uma microespuma oriunda do vermute que tira um pouco do charme de um drink cristalino. O “stirred” é mais elegante, quase sempre. Mas depende de perícia no preparo.
A decoração é outro capítulo passível de muita conversa. Há quem queira apenas uma casquinha de limão no fundo do copo. Mas já ouvi que o mestre Derivan, um dos melhores bartenders do Brasil, abomina esta prática. Alguns gostam de uma cebolinha em conserva. Confesso que esta prática, quem abomina sou eu! A boa e velha azeitona ainda é minha preferida. E a escolho sem recheio. Nada de pimentões vermelhos, amêndoas ou alho. Azeitonas verdes de tamanho médio e textura firme, conservadas em salmoura. E sempre em número ímpar. Uma ou três. Cinco seria exagero. Dizem que duas dá azar. Não creio. Acredito até mais na fantasiosa versão de um barman de New York segundo a qual os mafiosos tinham um código com os bartenders amigos: duas azeitonas era um sinal de perigo à vista. Polícia ou gangue inimiga.
Continuando a maratona dry martini das últimas semanas, e feita a apresentação dos ingredientes , vamos ao que parece interessar mais aos inúmeros impacientes internautas que comentam e mandam email: o preparo do Dry Martini.
Recomendo fortemente que o neófito assista o preparo por um profissional experiente algumas vezes e observe seu misto de agilidade, técnica e elegância. Cada etapa tem uma razão de ser. Cada ato se insere em um roteiro muito bem ensaiado. Na falta de um bar excepcional perto de você, busque na internet. O youtube tem algumas boas aulas.
É necessário que todos os ingredientes e utensílios estejam preparados e organizados. Como um show que não pode parar, o preparo do DM, depois de iniciado, tem de seguir inexoravelmente sem pausas, sob pena de desandar o equilíbrio das forças desencadeadas no universo. Ou, mais prosaicamente, o gelo derrete demais e torna tudo aguado, ou pior, quente. Leia antes de tentar fazer. A explicação não está exatamente na ordem cronológica.
Veja também:
»Dry Martini: O coquetel símbolo – parte1
» Dry Martini: O coquetel símbolo- parte 2
Colocados os copos de coquetel, o copo de misturar , as garrafas de gin e de vermute sobre uma tolha branca fina, para não escorregar, retire o gelo do freezer e coloque nos copos, mesmo que estes estejam previamente gelados. Reserve. Encha de gelo até a metade do copo misturador. Coloque o gin e o vermute na proporção desejada e mexa suavemente com uma colher longa de bar, no sentido anti-horário, por 15 segundos. Livre-se dos gelos dos copos e e coe a mistura.
Antes de seguir, um parêntesis. O profissional deve saber, seja com dosador ou com feeling, qual a quantidade exata de bebida colocar para encher os copos disponíveis. Um amador pode errar muito até pegar o jeito. Recomendo treinar com água antes de errar com seu caro gin. De qualquer modo você, com certeza, já ouviu falar nas várias proporções sugeridas de gin e vermute, não? Pode ir de 5:1 até 15:1. Mas há quem prefira umas mínimas gotas do vermute no gelo do misturador apenas para perfumar e jogar fora. Estou com estes. Cabe ao interessado descobrir sua preferência.
Para finalizar, pegue aquela pequena tira de casca de limão que estava reservada (eu avisei que não estava na ordem cronológica) e torça uns três dedos acima do copo, para borrifar os óleos cítricos na superfície da bebida. Passe a casca na borda num movimento rápido. Espete as azeitonas num palito e mergulhe no coquetel. Voilà. Seu primeiro Dry Martini! Se não ficou perfeito, não se desespere e nem desista.
Preparar e testar martinis pode ser um hobby interessante. As variantes são tantas e tão interessantes que assunto não faltará. E diferentemente de apreciar vinhos ou cervejas, é um hobbie que pressupõe uma postura mais ativa. Você faz sua bebida. Comece testando se gosta mais de “shaken” ou “stirred”. Depois, compare gin e vodka. Troque as marcas de vermute. Esgote as possibilidades do coquetel mais tradicional e sinta-se seguro para alçar voos mais altos em direção ao martinis “modernos”.
Sugestões?
Uma meca do martini é o Ritz Bar de Paris. Entre suas sugestões, além do tradicional, servido com gin ou vodka a 18,3 graus negativos, apelidado por lá de Platinum Bullet, você pode experimentar o Raspberry Martini, feito com framboesas frescas mergulhadas em vodka. Ou o mais interessante Newton Martini, também à base de vodka, que leva maçã verde e gotas de limão. Ou que tal um Gin and Her? Este usa gin, pepino e gengibre. Tente um Dirty Martini. Conheço duas versões: uma usa gotas da salmoura da azeitona e outra, minha preferida, uma única gota de angostura. Um DM pode se tornar, afinal, sua “Deliciosa Mania”.
*fusão de 3 colunas originalmente publicadas no portal Terra Magazine em fevereiro de 2011.
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