O vinho pode ter surgido no Oriente Médio e ter sido difundido pelos romanos, para com quem todo apreciador guarda uma dívida eterna. Mas pouca gente discorda que a França deu o paradigma de qualidade desta bebida. Por sua história e suas características culturais e geográficas, o país dos gauleses é exemplo para todo produtor do novo e do velho mundos.
Por maior que seja a rivalidade em outras áreas, quando se trata de vinho, os grandes se espelham nos melhores franceses. Claro que há muita coisa de baixa qualidade. Mas os melhores estão realmente entre os melhores do mundo. E cobram bem por isso. Uma das razões talvez seja o respeito pelo terroir. Outra, a marcação cerrada de críticos e comerciantes a cada safra. Esta, mais do que em muitos outros lugares do mundo, tem uma importância fundamental. Já ouvi de muitos produtores que num bom terroir e com boas vinhas é fácil fazer um bom vinho, numa boa safra. Mas que se conhece de verdade o bom produtor nas safras difíceis.
Recentemente provei três vinhos franceses da polêmica safra de 2006. Dois da borgonha e um do rhône. São duas regiões onde cada ano pode trazer surpresas positivas ou nem tanto. Depois da fabulosa safra de 2005, muitos consideram 2006 menor. O clima louco não foi exatamente amigo do produtor na Borgonha. Gilles Remoriquet, presidente da equipe técnica do Bureau Interprofessionnel des Vins de Bourgogne (BIVB), descreve 2006 como um “ano técnico”, em que os vinicultores precisaram usar todo o know-how e a habilidade para extrair cor e tanino. Para o Rhône não foi tão difícil. Alguns descrevem 2006 como um “ano clássico”. O melhor de uma sequência de três boas safras consecutivas.
O Clos de Lambrays Gran Cru 2006 (13,5% de álcool, R$ 722 na Gran Cru) é um Côte de Nuits, oriundo de uma grande propriedade para os padrões locais, 9 hectares, que ascendeu à condição de Gran Cru apenas em 1981. Trata-se de um vinho de grande pureza, frutado, fresco, elegante e com boa estrutura. Está num ponto ideal para ser bebido, mas sua ótima estrutura tânica provará, certamente, sua longevidade. Tem também boa acidez, sem ser agressivo. Eu adoraria beber um desses daqui a uns 10 anos. De preferência com uma carne de cordeiro com ervas. É uma safra que recebeu 93 pontos da Wine Advocate e 93 da Wine Spectator.
Foto: Mauricio Tagliari/Terra Magazine
O Domaine Chandon des Briailles Volnay Premier Cru Caillerets 2006 (R$ 390, na Gran Cru) é outro que terá vida longa. Mas já se apresenta com toda a elegância desde já. Seu aroma floral, de suaves violetas, é o que primeiro impressiona. Na sequência, a presença mineral se faz notar. No paladar apresenta fruta elegante, ótimo corpo, rico sabor de frutas vermelhas, taninos finos e ótima acidez. Um daqueles momentos em que a pinot noir se expressa maravilhosamente bem através de um terroir. Um vinho superior.
Foto: Mauricio Tagliari
Do Rhône destaco o Hermitage M de la Sizeranne, de Chapoutier (U$ 208,50 na Mistral). Oriundo de três vinhedos, com diferentes tipos de solo, em Bessards, apresenta uma cor jovem ainda, rubi com reflexos púrpura. Aroma denso e complexo, com cassis, especiarias, madeira sutil e algo mineral. Na boca é encorpado, aveludado, carnudo, quente e persistente. Taninos moderados, acidez leve mas presente e final também mineral. É um vinho não filtrado que passa apenas um terço em madeira nova. Alta tipicidade. Para saborear lentamente, meditando. Recebeu 91 pontos da Wine Spectator. Eu daria nota maior.
Chapoutier é um pioneiro no resgate da filosofia de vinhos de terroir e orgânico. Na verdade, muitos de seus vinhos são certificados biodinâmicos. O lema da maison Chapoutier é “Fac & Spera”, isto é, “faça e espere”, como a dizer que num bom terroir, com boas cepas e um trato correto, o papel do vinicultor é apenas parcial. Há de contar sempre com a “esperança” de um ano de sorte para trazer uma safra de qualidade.
Se os vinhos citados acima servem de referência, 2006 está melhor do que parecia.
Curiosidade: há alguns anos Chapoutier foi também o primeiro a usar rótulos em Braille. Este Hermitage é uma homenagem a Maurice Sizeranne, que desenvolveu o método Braille padrão em 1880, usando contrações de palavras de modo a diminuir os tamanhos dos livros.
*publicado originalmente no portal terra magazine.
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